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Quando eu tinha cinco ou seis anos, o meu avô levou-me ao camarote pela primeira vez. Não recordo quase nada desse dia, mas lembro-me vivamente do medo quando lá cheguei, após a viagem no carro cor de cobre que tinha guelras dos lados, como os tubarões. No camarote eu tinha a sensação da vertigem – de que, se me debruçasse, acabaria por deixar-me levar pelos braços levantados dos adeptos da Luz e escorregar anéis abaixo, de que só pararia no relvado. Deviam marcar-se muitos golos naquele estádio, porque a minha memória é de que as pessoas estavam constantemente a gritar de júbilo ou de euforia, os braços no ar, e eu, que era uma criança sem grande capacidade de absorção do ruído, tapava os ouvidos à espera de que alguma coisa explodisse dentro ou fora da minha cabeça. O meu pai, que por vezes também aparecia naquele camarote, sorria desajeitadamente ao reparar que o seu único filho era pouco generoso com o futebol e ainda menos com as multidões; e do resto pouco sei, era como se o ruído avassalador dos adeptos encobrisse tudo, um rumor que se levantava como uma vaga num sonho no instante de sucumbir.
Na época 1980/81 o plantel do Benfica era este:
Nené, Shéu, Carlos Manuel, Manuel Bento, João Alves, Pietra, Chalana, António Bastos Lopes, Veloso, Humberto Coelho, Laranjeira, César, Frederico, Vital, Reinaldo, José Luís, Jorge Gomes, Alhinho, Botelho, Alberto Bastos Lopes, Toni, Joel.
Mais tarde nesse ano, no jornal, apareceria uma fotografia de Nené com a camisola do Futebol Clube do Porto, erguendo a Taça de Portugal conquistada no Jamor. Perguntei à minha avó se o Nené tinha ido jogar para o Porto, e ela deu-me uma palmada na nuca e aconselhou-me a deixar de ser parvo e perguntar ao meu avô. Nesse tempo era normal os jogadores vestirem as camisolas dos outros clubes numa manifestação de desportivismo, mesmo ao erguerem a taça recém-conquistada. O meu avô José tinha os recortes d’A Bola e do Record espalhados pela casa, por vezes guardava-os nas gavetas junto das pérolas falsas da minha avó e dos relógios digitais embrulhados em papel celofane. Nessas gavetas, uma vez, encontrei uma arma – uma pistola de coldre pesado que a minha avó me convenceu que era de fulminantes. Mas não era de fulminantes, era uma pistola a sério, e eu brinquei com ela durante um dia e, depois, misteriosamente, o objecto desapareceu. Aos domingos à noite jogávamos ao Totobola: o meu avô sentava-se à mesa da sala (uma mesa cujo tampo, voltado ao contrário, era uma superfície de jogo em feltro verde – não admira que o meu avô tivesse, nos seus últimos dias, jogado tudo o que tinha, mandando às urtigas uma pequena fortuna que ficou para sempre queimada na consciência da minha avó) e eu sentava-me ao lado dele, tudo cheirava a vinho, a cigarros e a feltro, eu gostava de mexer nos braços do meu avô, cobertos de pêlos brancos, e ele perguntava-me:
Leixões – Oriental?
Dois, respondia eu.
Sporting – Portimonense?
X, era o meu palpite.
Era assim que preenchíamos o boletim. Os dias passavam, e eu comecei a ansiar pelo fim-de-semana, quando o Benfica invadia as nossas vidas. Não era apenas os jornais nem a ansiedade do meu avô, eram os pratos e os copos. Os pratos, com o tempo, lascaram e quebraram-se, mas ainda guardo um copo do Campeão Nacional e Campeão da Europa de 1960/61, os copos desse tempo são resistentes, talvez a areia do fundo dos lagos fosse de melhor qualidade (o facto é que o copo permanece aqui, na estante, à esquerda do lugar onde escrevo, este copo que nunca utilizei nem nunca irei utilizar, a única coisa que me resta do meu avô José). O Benfica começava na sexta-feira à noite com a leitura dos jornais e prolongava-se até à madrugada de segunda: amiúde despertei na calada da noite, suado, debaixo dos cobertores acolchoados, e vislumbrei pela fresta da porta a luz intermitente do abajur da sala. Uma vez levantei-me e, pé ante pé, deslizei o corpo magrinho pela abertura e vi o meu avô a dormir no sofá, o maço de SG Gigante ao lado da mão grossa e do dedo com cachucho e, numa mesinha, uma garrafa de Vat 69 e um copo vazio, eu estranhei aquilo porque, lá fora, atrás das cortinas de cetim manchadas pelo fumo do cigarro, havia um dia a nascer, ouviam-se os pássaros que gemiam dos beirais e, pouco depois, os passos das senhoras do terceiro andar, irmãs gémeas que nunca se separavam e que trabalhavam cedinho na Junta de Freguesia. Outra vez na cama, lembro-me de adormecer a pensar que, um dia, eu já não teria oito anos e seria um homem como o meu avô, e poderia ver televisão até tarde e dormir na sala.
Nas semanas em que o Benfica ganhava, que eram quase todas, o meu avô levava para o trabalho um lenço vermelho no bolso das calças, dobrado em quatro. Tinha cinco ou seis lenços destes, que a minha avó lavava consistentemente aos sábados (raios partam o Benfica!, dizia ela). Se o Benfica perdia, o que quase nunca acontecia, levava um lenço branco e uma disposição muito menos agradável (raios partam o Benfica!, dizia a minha avó) – e se a equipa empatava, então, não levava lenço nenhum, o mais provável é que, nesses dias, mudasse de relógio ou vestisse, por cima da camisa branca, um daqueles casacos de malha castanhos ou verde-escuros com que o víamos em casa, era uma espécie de declaração de indiferença ou de apatia, como se a semana não existisse ou fosse feita de matéria moldável e ainda indecisa. Durante o Europeu de 1984, num dia em que Portugal jogava com a Espanha, o meu avô chegou a casa e disse que faltavam jogadores do Benfica no onze, que o Fernando Cabrita favorecia os jogadores do Porto, e foi deitar-se antes de o jogo terminar. Eu fiquei acordado nessa noite e vi o primeiro filme do Rambo na sessão da meia-noite, era a primeira vez que a RTP passava um filme daqueles, e depois deitei-me a sonhar com facas de gume afiadíssimo e carros da polícia destruídos, mas o meu medo – o meu grande e terrível medo – era do camarote do Estádio da Luz, do barulho das vozes ensanguentadas e da rouquidão dos homens barbudos, do bulício descontrolado da multidão prestes a ebulir.
A seguir, o meu avô morreu. Eu e a minha irmã só soubemos da morte muito depois da morte: nesse Verão fomos passar férias longe de casa e, quando regressámos, o avô estava ausente. Durante alguns dias não perguntámos nada, ou talvez tivéssemos perguntado, ao que a minha avó respondia que o avó José andava a trabalhar a más horas. Um dia, na cozinha, eu tornei a perguntar, e ela respondeu:
Então, o avô já morreu.
Como se fosse um facto que as pessoas tinham lido nas notícias e visto na televisão, um facto que toda a gente conhecia menos dois miúdos de nove anos que tinham ido de férias. Nessa ocasião chorámos, e eu lembrei-me do carro do avô José, que continuava parado junto do passeio do outro lado da rua, e onde permaneceria durante uns dois ou três anos, os pneus vazios, o interior desabitado com o desamparo das casas abandonadas, antes de desaparecer misteriosamente e para sempre (nunca tornei a ver um carro parecido com um tubarão). E lembrei-me dos pratos e dos copos do Benfica, com os quais nunca tornaríamos a comer, e ainda consigo ver, com o mesmo silêncio ensurdecedor dos domingos, a minha avó a sair de casa com um ramo de flores para ir pôr na campa do meu avô, ainda que ele tivesse jogado a fortuna, mesmo que ele houvesse professado o Benfica, o tabaco e o vinho os amores da sua vida, não obstante ele, como tantos homens daquela geração, ter desistido, pois desistir era aquilo – era olvidar os afectos e alhear-se voluntariamente de si mesmo.
Talvez porque o meu avô morrera, e ele fora o elo de ligação entre mim e o futebol – ou, melhor dizendo, a matéria afectiva que suavizara o clamor das multidões –, durante muitos anos não reparei que o futebol existia. Depois, quando atingi a maioridade, e o Benfica venceu o campeonato, acendeu-se alguma coisa há muito dormente em mim. Ou talvez tenha sido o efeito de um jogo do Benfica com o Parma, na meia-final da Taça das Taças, em que Rui Costa (então um miúdo) jogou como se o futebol fosse uma espécie de dança exótica. A equipa titular desse jogo:
Neno, Abel Xavier, Mozer, Hélder, Veloso, Kulkov, Vítor Paneira, João Pinto, Yuran, Rui Costa, Isaías
E a partir desse dia juntei à minha identidade fragmentada o benfiquismo. Não sabia, nessa altura, que um dia escreveria estas páginas e que, através delas, ressuscitaria a figura perdida do meu avô (talvez parte importante da vida seja isto: um processo doloroso e infindável de ressuscitação até nos sentirmos confortáveis e apaziguados com o fantasma que dorme aos pés da nossa cama). Fiz-me sócio do clube e, embora não tivesse camarote, comecei a frequentar o terceiro anel naqueles que foram os anos mais solitários e sombrios da história do clube. A vantagem de ter atravessado esses anos – e a de todos aqueles que os atravessaram – é que, tendo suportado aquele deserto, qualquer oásis nos parece maravilhoso, mesmo se for um palmo de areia com uma palmeirinha de plástico. Em 1994, contudo, qualquer ideia de oásis era ainda uma miragem: o Benfica tinha pela frente uma enorme travessia sem recompensas, uma penosa dose de dor imediata. Do medo de camarote transitei para a melancolia do benfiquista, um estado que muitos conseguem identificar e que pode prolongar-se indefinidamente – é o que acontece quando um clube é demasiado grande, quando o peso do passado torna tudo mais urgente. Na verdade, um clube como o Benfica nunca perde: ele está sempre em vias de ganhar, continuamente no processo de vitória anunciada, e as derrotas, ou as fases menos boas, os resultados menos conseguidos, os anos para esquecer, são uma demora escusada, uma espera que gera enorme sofrimento porque a consciência dos benfiquistas funciona como um único balão de ar quente que continuamente se esvazia e torna a encher, e assim podemos passar uma vida inteira, neste processo de vir a conseguir, porque mesmo na vitória somos insatisfeitos, afinal o que é ganhar senão a possibilidade de vir a perder o que ganhámos? Num sentido muito literal, a vida de um clube de futebol é uma mimese romanceada da nossa própria vida, a roda do samsara na qual tudo se repete e repete e repete – só mudam as personagens.
Nesses primeiros tempos de sócio levei o meu irmão mais novo ao futebol algumas vezes. Assistimos a jogos caseiros debaixo do sol tímido da Primavera e, pela televisão, fomos acompanhando os desaires europeus desses anos mais difíceis. O meu irmão, ao contrário de mim, nunca teve medo de ir ao estádio – era um miúdo rijo, de olhos tortos, que aprendeu na infância o amargo sabor da imperfeição, e, embora eu lhe prometesse (como se fosse a minha responsabilidade) que o Benfica haveria de regressar a um tempo que nem eu nem ele lembrávamos, nunca o Pedro se mostrou desanimado ou por um momento se lembrou de dizer, como os miúdos fazem hoje, que afinal não era do Benfica. A fé demonstra-se com maior virtude nos tempos mais árduos; ou, por outras palavras: Deus gosta mais de nós quando estamos decrépitos.
Sob o efeito de uma dolorosa tortura, é possível que eu abdicasse de muitas coisas antes de abdicar do clube de futebol. O Benfica está profundamente enraizado na minha infância; num certo sentido nunca foi uma escolha, da mesma maneira que não escolhemos os nossos pais nem o nosso rosto – trair o meu clube seria o mesmo que esquecer que o meu avô existiu, com os seus casacos de malha e as suas dores, com o seu bigode grisalho e os copos de Campeão da Europa. Como é possível, no entanto, que esse medo do camarote – esse ruído ancestral que ainda hoje me paralisa sempre que atravesso uma praça movimentada ou escuto a sirene crescente de uma ambulância – seja a primeira recordação que tenho de alguma coisa da qual seria organicamente incapaz de abdicar? Talvez o medo seja aquilo que com maior força nos mantém reféns de certas crenças.
Durante muitos anos não me lembrei do meu avô José. A vida levou-me para outras paragens, para longe da casa dos meus avós e dos afectos da infância. A morte do meu avô, anunciada naquela cozinha mal iluminada pela luz eléctrica que, no tecto, zunia em constante surdina, fechou-me durante muito tempo aos sentimentos; não me permitiu viver os lutos nem ter a capacidade de encerrar certos processos. O Benfica também ficou em aberto: os domingos tornaram-se lugar de prolongadas e desnecessárias angústias; era importante o Benfica vencer, muito importante, drasticamente importante e, depois, quando a adolescência deu lugar à idade adulta e às outras coisas (também drasticamente importantes) que constituem a vida, esqueci-me do clube (quase ninguém pensa em desporto quando está nos braços de uma mulher que ama, ou num avião a caminho de um lugar desconhecido). Esqueci-me do meu avô e desse camarote de sonhos aziagos. Mas ganhei outras coisas, entre elas a convicção de que, não obstante tudo o que viesse a acontecer, o Benfica permaneceria, de forma intermitente mas constante, na minha vida; e de que muito poucas coisas permaneciam dessa maneira, ou somente as que resistem a quase tudo.
De que, por mais que eu me tentasse evadir, o meu avô continuava sentado no sofá a dormir de boca aberta, o ar quente de Agosto roçando levemente o seu bigode e o cigarro meio apagado na borda do cinzeiro; de que, ali, no centro nevrálgico do desconsolo, estava a razão de todo o apego da minha infância e do enorme vazio que chegou mais tarde.
Quando eu levar o meu sobrinho ao futebol, poderei contar-lhe do antigo Estádio da Luz e da trabalheira que era chegar ao camarote. Poderei contar-lhe que o seu bisavô, o excelente senhor José, fumador de SG Gigante e bebedor de vinho, whisky e outras coisas distintas – nunca entendi muito bem o que era o Vat 69 – arrumava o carro no Alto dos Moinhos, o carro-banheira com guelras de tubarão, e que depois caminhávamos por um enorme descampado ao fundo do qual, como numa paisagem lunar, avistávamos o poderoso colosso de betão. Poderei, também, dizer-lhe a verdade: que não me lembro de nada disto, que a memória dos estofos de couro do carro, ou do Old Spice no pescoço peludo do avô José, ou a recordação dos seus olhos de pálpebras descaídas e hálito a carvão, é uma memória inventada ou tão profunda em mim que, por vezes, julgo que todos os sons e cheiros do mundo nasceram daí. Poderei, num dia de calor, levar o Matias ao camarote – não obstante, por influência paterna, o meu sobrinho torcer pelo Sporting. Não faz mal. Talvez ele queira saber alguma coisa do bisavô que nunca conheceu e, para tal, é-lhe mais útil sentar-se ali comigo e, juntos, celebrarmos o facto de, antes de nos conhecermos, já eu ter pensado em, um dia, levá-lo a ver um jogo do Benfica.
O último onze do Benfica foi este:
Luisão, Samaris, Jiménez, Gaitán, Júlio César, Jonas, Eliseu, Gonçalo Guedes, Sílvio, Talisca, Jardel
Olho para o lado. Observo a multidão que, na outra ponta do estádio, se prepara para receber a equipa. O ar é invadido de papelinhos e fuligem, é como se tudo brilhasse ou fosse feito de purpurina. Depois, o som ergue-se da terra e engole-nos. Ardem-me os olhos como me ardiam na infância; há uma retração involuntária da glote, sinto que as palmas das mãos começam a suar e esfrego-as nas calças de ganga. Depois olho para o meu sobrinho, que se aproximou da balaustrada de madeira onde o camarote de 1980/81 termina e o futuro começa.
Ele sorri, não há uma centelha de medo nos seus olhos, nenhum temor, só a perplexidade do momento: diz-me alguma coisa mas o barulho é tanto que não o consigo ouvir, só vejo a boca dele a mover-se.
Não tem importância, penso, e também sorrio, no momento em que a equipa sobe ao relvado e o medo se vai embora.
(conto publicado no volume "Mística em Prosa")